domingo, 14 de junho de 2009

Deitado Eternamente em Berço Esplêndido

Vastas extensões de solos aráveis, naturalmente irrigadas por chuvas plenas em clima ameno fazem da América do Sul, e do Brasil em particular, um ambiente extremamente favorável para a agricultura e a criação de animais. A abundância de água nos rios favorece a produção de energia hidrelétrica. Some-se a essas benesses o mito do Eldorado de riquezas minerais nas rochas e sedimentos e o ouro negro do petróleo encontrado em cada vez maior fartura no subsolo, e teremos um quadro aproximado dos valores ufanistas reconhecidos pela sociedade brasileira contemporânea como qualificadores de um berço esplêndido. Já as magníficas florestas, ícones indissociáveis do Brasil consagrados no verde da bandeira, tendem a não ser reconhecidas como riquezas em si mesmas, capazes de motivar o orgulho nacional sem que se veja nelas alguma destinação utilitária. Se são os peixes dos rios e lagos apreciados, a madeira nas toras de árvores seculares, serrada, e um ou outro recurso adicional da flora e da fauna nativas, empregados, ainda assim o imaginário popular do “berço esplêndido” não reconhece a vida silvestre com valor comparável aos tesouros inanimados que constituem a base ideológica das riquezas da pátria.

As culturas que aqui se desenvolveram antes da invasão europeia tinham uma leitura diferente do significado de riqueza. Por milênios, o registro paleontológico sugere um continente pouco alterado na sua integridade ecológica. Seria esta uma indicação das florestas terem constituído um vasto jardim do Éden para aqueles habitantes ancestrais? A região continha extensivas paisagens antropizadas, principalmente pela domesticação da biodiversidade e manipulação da vegetação. Referindo-se a isso, o etnólogo Eduardo Viveiros de Castro afirma que “a relação dos povos indígenas com o ambiente americano era tecnológica, e não natural... tratava-se de uma relação plenamente antrópica, técnica, não uma relação "edênica”... de pura simbiose ecológica. Devemos falar então em coadaptação entre homem e ambiente neste caso, antes que de uma adaptação unilateral do ambiente aos desígnios do homem”. O modo de vida com baixo impacto ecológico dos habitantes ancestrais do continente sul-americano sugere que estes o viam como manancial de vida e o utilizavam de maneira respeitosa e tecnologicamente sustentável. A ciência atual tende cada vez mais, pelo viés objetivo, a corroborar esta visão. Michael Heckenberger e colaboradores, por exemplo, relatam em artigo na revista Science a descoberta de urbanismo pré-colombiano na Amazônia. Encontraram vestígios de complexas cidades distribuídas no alto rio Xingu, que sustentavam alta densidade populacional em paisagens com estradas, barragens e construções, mas onde a floresta era mantida em toda sua biodiversidade e função.

Por que os segredos nativos sobre a tecnologia da sustentabilidade foram perdidos ao longo da história? E por que a sociedade atual, amante da tecnologia, orienta-se por um sistema de valores cuja percepção antagônica e excludente do ambiente vivo justifica o desenvolvimento somente das riquezas materiais inanimadas? Uma das respostas pode encontrar-se no insuspeito desenvolvimento. Para os povos que aspiram por afluência, desenvolvimento tornou-se sinônimo quase obrigatório de geométrico progresso material. E, de fato, o progresso atingido por várias nações nos últimos dois séculos significou uma acumulação de opulência material jamais vista. A melhoria no conforto, a maior longevidade e o acesso aos novos símbolos de riqueza e da modernidade tornaram-se atraentes indicadores de desenvolvimento. Mas como a acumulação de riquezas e o progresso humano geraram uma ruptura com a Natureza?

O caso do Brasil ilustra um mecanismo padrão de desenvolvimento, no qual é possível encontrar elementos-chave para a compreensão de como as práticas correntes de desrespeito ao ambiente e à vida têm um encadeamento lógico na história. Ao longo dos últimos dois séculos, a antiga aspiração brasileira pelo desenvolvimento transformou-se num modus operandi que se cristalizou no desenvolvimentismo. O desenvolvimentismo como tal resultou da fusão de ideias do positivismo, dos nacionalistas, dos defensores da industrialização e dos intervencionistas pró-crescimento. A força propulsora para esta agregação surgiu da legitimada vontade de passar de vagão a locomotiva no avassalador trem do desenvolvimento lançado pela revolução industrial. Era a oportunidade de sair do primitivo domínio agrícola, com sua economia simples e localizada, e passar para a era industrial de sistemas complexos e economia expansiva. Nas palavras do economista político Pedro Fonseca, “o desenvolvimento já não seria apenas uma palavra de ordem a mais, mas o elo que unifica e dá sentido a toda a ação do governo, ao legitimar a ampliação de sua esfera nos mais diferentes campos.... Torna-se um fim em si mesmo, porquanto advoga para si a prerrogativa de ser condição para aspirações maiores, como bem-estar social, ou valores simbólicos de vulto, como soberania nacional”.

Assim, a decantada marcha para o desenvolvimento transmutou-se em um destino manifesto à brasileira, e na sua esteira surgiu uma grande e moderna nação, que caminha celeremente para o status de potência mundial. Nem por isso estabeleceu-se neste país verde um sistema justo de geração dessas riquezas materiais, já que os benefícios dos visíveis avanços econômicos ainda não percolam para uma maior parte dos brasileiros. Por conta da pressão política e econômica exercida pelas imposições do destino manifesto verde-amarelo, as estratégias de desenvolvimento que estruturam o caminho rumo ao progresso material foram e ainda são implementadas com vigor e sabedorias variáveis. Como a aceleração nas demandas dos mercados reflete-se linearmente na aceleração das estratégias de desenvolvimento, o cuidado com a conservação de ecossistemas, quando existiu, esteve subordinado às conveniências dos mercados. E, infelizmente, no sistema econômico atual, que ainda considera o capital natural como uma externalidade não precificável, quase nunca conservação do ambiente e da vida combina com ganhos econômicos. Isto resulta que para os não-humanos, os incontáveis trilhões de seres que compõem a mítica cornucópia de vida deste país megadiverso, vive-se a fase terminal de um extermínio ignorante, sistemático, insensível e, paradoxalmente, destrutivo das bases do sistema de suporte de vida, portanto comprometedor do próprio desenvolvimento.

A construção dos valores pátrios, a consolidação da economia para o desenvolvimento e o jogar fora a Natureza com a água do banho são todos fenômenos cujo enfrentamento requer compreensão de estruturas culturais complexas e sua evolução no tempo. Se o que se quer é um ajuste construtivo no processo social ou a criação de um pacto mais iluminado para um desenvolvimento sustentável que não fique somente na retórica, enxergar adiante requer um olhar franco para trás. E uma radiografia das raízes culturais recônditas que explicam atitudes e valores atuais precisa começar pelo componente mais sofrido no triângulo do desenvolvimento sustentável, o pouco caso brasileiro com o meio ambiente e a vida. Roberto Gambini propõe que denominemos a chegada no século XVI dos europeus ao novo mundo como o que realmente foi, uma invasão, a que Viveiros de Castro chama de enorme catástrofe, e não um róseo descobrimento. A sistemática subtração na nação brasileira da espiritualizada herança nativa foi a segunda invasão, feita por emissários da igreja na alma dos povos. Com a pulverização da cultura nativa, perderam-se também os conhecimentos tecnológicos evoluídos sobre sustentabilidade em ambiente tropical complexo, principiando assim a destruição do paraíso. A partir da brutal invasão colonial europeia, portanto, os ricos biomas brasileiros passaram por sucessivas ondas de exploração destrutiva. Além de dizimarem os povos nativos com doenças terríveis e tentativas de escravização, os europeus inauguraram uma antiecologia truculenta, que se tornou modelo para o que viria a seguir, com a exploração voraz do primeiro recurso natural
brasileiro levado à extinção, o pau-brasil. O modelo colonial europeu de exploração continuada de qualquer recurso que tivesse valor até seu esgotamento total, sem qualquer preocupação com a sustentabilidade, explica-se superficialmente pela própria natureza da distante colônia de além-mar. O Brasil era uma não-pátria, terra de ninguém, sem lei nem rei, habitada por humanos primitivos que, segundo a igreja da época, nem alma possuíam, repleta de tesouros irresistíveis, obscenamente disponíveis para a pilhagem. Passaram-se os séculos, foram-se os conquistadores mercenários, surgiu um povo miscigenado da terra, tornou-se independente a nação e com ela formou-se também uma pátria. Mas a herança maldita do saque à Natureza transferiu-se dos europeus por hereditariedade cultural, quedou-se alojada no inconsciente coletivo, incrustou-se em memes culturais10 autoreprodutivos, hoje plenamente dissimulados em nossa identidade brasileira. O saque, feito agora sem muitos pudores na própria mãe-pátria, embutiu-se sub-repticiamente como mentalidade de desenvolvimento, vestiu-se de direito e assegurou-se de imunidade nas instituições, associando-se como um carrapato ao mantra do destino manifesto verdeamarelo. O desrespeito cultural ao esplêndido lar pátrio provido pela Natureza é continuamente re-introjetado, tornou-se inato em mentalidades de segmentos chave da sociedade.

A consciência sobre todo o negativo associado à história da invasão europeia pode levar ao despertar de uma crítica libertadora, mas nem por isso seria sábio perder-se em lamentações sobre um passado revoltante pelo qual não podemos responder. Se, por um lado, o reconhecimento dos valores distorcidos é condição necessária para avançar para um futuro sustentável, permitindo reversão de curso através do diagnóstico correto e remoção do carrapato cultural herdado do invasor; por outro lado, para não cair no vazio, é importante recuperar os referenciais saudáveis e verdadeiros de respeito à vida. É possível que as culturas pré-colombianas que aqui habitavam ofereçam em sua memória um rico portfólio de soluções tecnológicas para a sustentabilidade, que, se empregadas, viabilizariam a recuperação de uma coexistência respeitosa do homem com a Natureza. Entretanto, para a civilização atual vir a fazer qualquer aproveitamento eficaz das tecnologias nativas em sua transformação na direção da sustentabilidade, seria necessário enfrentar grandes desafios nas adaptações extensivas e criativas requeridas. Ademais, sem poder contar com a receptividade do sistema cultural prevalente, urge encontrar rotas alternativas de diagnóstico e terapia. Impermeável à crítica externa, resta dissecar o âmago da própria mentalidade invasora, encontrar nela sua lógica e contradições, e trabalhar a partir daí. Quando numa floresta fechada se toma uma trilha errada que leva a um brejo intransponível, a impossibilidade de desvios ou corta-caminhos a partir daquele ponto deixa somente uma saída: retornar pela mesma trilha até a bifurcação do equívoco. Analogamente, é preciso dar marcha a ré nas caravelas, retroceder no tempo e no espaço para contemplar criticamente o pequeno continente Europeu, donde séculos atrás explodiram ondas de barbarismo colonial. Quando a Europa e sua história cultural são colocadas em foco, torna-se evidente que não somente os obscuros valores feudais nos atingiram na invasão, desaguando na interrupção do desenvolvimento cultural autóctone por chumbo, aço, germes e crucifixos. Com a subordinação forçada das colônias ao processo cultural europeu, a interferência foi muito maior e duradoura. Almas, corações e mentes nativas, antes livres, passam a carregar o peso do império nas costas. Assim, o miscigenado povo brasileiro surgiu e cresceu fundamentalmente colonizado, quase sem memória própria, atrelado ao hegemônico continente distante. Para compreender os pontos críticos na evolução do pensamento europeu e suas amplas implicações, podemos adotar a mesma metodologia dos naturalistas europeus do século 19 que chegavam para estudar e descrever o jardim do Éden no novo mundo. Paralelo curioso no plano simbólico, Humboldt às avessas, o nativo americano precisa investigar os valores e estruturas daquele pensamento e cultura que lhe subjugou, o colonizado escarafunchando a mente de seu colonizador.

Com uma história humana intrincada e fascinante, o continente europeu foi o caldeirão multicultural onde se deu o drama central na maturação da ciência e da tecnologia modernas. Como estas estruturas culturais e seus métodos de pensamento que definem percepções correntes da Natureza e de si próprias tornaram-se trilhos condutores na gestação e agregação da civilização global, pode-se dizer que saltaram da Europa para o mundo e tornaram-se temas universais da humanidade. Um bom local, portanto, para buscar raízes e revelar encadeamentos com consequência para a sustentabilidade.

© Copyright Antonio Donato Nobre, 2009, informações com o autor, antonio.nobre@inpe.br

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Chuvas de Arco Iris

Fui a Manaus a convite do meu diretor, Adalberto Val, para contribuir com um esforço de renovação feito pelo INPA na definição de novos focos institucionais, discutir os grandes objetivos da pesquisa Amazônica. Apresentei uma rápida analise sobre serviços ambientais, mas me encantei mesmo foi com o que se apresentou lá sobre nuvens, chuvas, aerossóis e a floresta, oriundo das pesquisas lideradas pelo Instituto Max Planck. Ao embarcar no Airbus A330 de volta a São Paulo, estava feliz de haver escutado sobre as novidades que aumentavam cada vez mais a conciência da importância da floresta para o clima. Enquanto rolava o grande avião pela pista pensava sobre a maquina fantástica e sofisticada, dezenas de toneladas, capaz de erguer-se na direção do azul numa velocidade impressionante. Apenas poucos minutos após a decolagem, deixando a urbe da selva para trás, já podia divisar a sudeste o campo de nuvens para além da margem direita do grande Amazonas. Chegamos rápido a altitude de 12 mil metros (62 graus negativos de temperatura externa), passava das 16:30 h. Com o sol baixo no horizonte atrás, eu sentava na janela ao lado esquerdo, quase na cauda da aeronave, com o panorama se desenrolando como uma pintura em movimento abaixo da enorme asa. Tapete de brócolis verde escuro, via-se a floresta por debaixo de nuvens baixas individualizadas, chamadas de maritime pelos meteorologistas, que chegavam a 4 km de altura. Com o formato de algodão doce, resplandeciam estas nuvens de um branco puro, todo o quadro emoldurado por uma variedade de outras nebulosidades de água em suspensão, cujas matizes variavam do branco ao cinza chumbo. Acima deste grande teatro tridimensional, disputando espaço na abóbada celeste onde deslizava sereno nosso avião, delgadas formações translúcidas flutuavam no invertido oceano azul-oxigênio do infinito. Como se toda esta visão de beleza não fosse suficiente, as variadas nuvens de baixa altitude estavam quase todas descarregando seu precioso líquido sobre a floresta, como regadores no jardim do Éden. Neste momento veio o golpe de misericórdia, que fez imaginar-me transitando num outro mundo etéreo: a iluminação solar razante a projetar-se sobre estas nuvens, meu ângulo privilegiado de visão e os cristais no líquido em precipitação entraram em sinergia num efeito extraordinario de refração da luz branca, produzindo milhares de micro arco-iris, creio um para cada gota, colorindo a chuva em toda sua altura, da fonte na nuvem, cujo branco não se contaminava com as cores, até o sombreado tapete verde na floresta. Como o avião no seu curso deslocava lentamente meu ângulo de visão, as cores na chuva de arco-iris passeavam por toda a extensão lateral da precipitação, fazendo com que a nuvem branca extendesse um iridiscente e multicolorido vestido longo até a floresta, vestido que também parecia escoar pelo efeito das gotas em movimento gravitacional. A surreal beleza daquela realidade inundava meus olhos e se multiplicava às dezenas, pois outras nuvens próximas e distantes produziam o mesmo efeito de luz e cores, um espetáculo de 20 minutos que pareceu desenrolar-se noutra dimensão de tempo. Ainda agora, dias depois, deleito-me na observação da cena projetada pela memória vívida na tela virtual da mente. Quando passamos pelo que parecia ser uma fronteira do campo das chuvas de arco-iris, o airbus inclinou-se para a direita, desviando-se de algo à frente, mostrando-me pela janela empinada o azul escuro profundo do céu onde agora não haviam nuvens. Quando a aeronave completou o desvio de trajetória à direita, voltou a girar em torno do eixo longitudinal, agora para a esquerda, descrevendo um grande arco em torno do motivo do desvio, uma estrutura gigantesca que agora preenchia quase todo o campo de visão na minha janela pendente. Era uma nuvem cilíndrica vertical branco-fosforecente com textura flocos-de-lã, cujo topo estava acima donde voávamos e a base surgia das profundidades, quase tocando a superfície. Iluminada potentemente pelo sol inclinado, esta nuvem era um gigante branco isolado no espaço, com o azul profundo e limpo no segundo plano acima, o verde escuro intenso da floresta em baixo e o campo de belas nebulosidades esparsas à distância, uma pintura impressionista de Monet. Normalmente as nuvens fisicamente próximas do avião passam muito rapido, mas esta não. Contemplava-nos pacientemente, parecia como se a viagem houvesse apeado num mirante aéreo imaginário para render homenagem àquela apoteose branca da Natureza. Devia estar bem distante, talvez uns 10 km, mas sua circunferência e estatura eram tamanhas que geravam a ilusão de estar logo ali, como se a asa inclinada, na sua trajetória em câmera lenta próxima do perímetro, fosse tocá-la. O arranjo arquitetônico majestoso das gotas de água lá fora foi demais para minha alma, rolaram as gotas da emoção.
Como pode ser que nunca houvera visto tal espetáculo tendo vivido mais de 20 anos em Manaus e tendo voado este mesmo trajeto incontáveis vezes? Nestas imagens pude ver em ação todos os principios descobertos pela ciência atmosférica do projeto LBA; pensei na cornucópia de biodiversidade ativa no oceano verde da floresta, controlando a evaporação e a condensação da água no ar, a formação de nuvens, a dinâmica dos ventos. Mas acima de tudo, pude testemunhar com emoção como a Natureza viva consegue ser prática sem perder a elegância, enfeitando cada processo fundamental com uma arte incomparável de extravagante beleza.
E a viagem no airbus continuou. Estavamos possivelmente nos aproximando da região do rio Teles Pires, não sei. Vi no horizonte à frente um brilho alaranjado, como um reflexo numa superficie espelhada. Quanto mais nos aproximávamos, mais intenso o laranja até que finalmente pude divisar a superficie plana de um grande rio que serpenteava na floresta. Donde vinha a cor forte que se refletia ali? O sol estava a oeste, a reflexão era promovida por luz de leste. Pouco depois começaram a aparecer áreas imensas de desmatamento recente, estávamos chegando ao arco do fogo. Mas se estávamos na estação das chuvas, donde viria o alaranjado que parecia o reflexo de chamas? Respondendo a esta pergunta surge no campo de visão de meu privilegiado assento no anfiteatro aéreo uma cena chocante de simbolismo assustador. Nuvens grandes, muito maiores do que aquelas sobre o oceano verde, subiam da floresta em ruínas. Eram nuvens esgarçadas, confusas, não tinham uma geometria definida. Não haviam chamas nem labaredas reais de queimadas, não poderia haver com tanta umidade. Aquele laranja, que já se tingia de tons vermelhos fortes, era a mesma luz do poente, agora com o sol afundando no horizonte e separando os componentes primários da luz branca. A porção quente do espectro pintava de fogo as nuvens bagunçadas, de tal forma que estas pareciam com enormes labaredas de 7 km de altura. Fechando a visão do céu azul profundo de até há pouco, e completando o cenario sinistro, um outro tipo de formação nebulosa, cor de chumbo lembrando fumaça e fuligem, constituia um teto denso e compacto acima destas nuvens-chama. Aquele cenario real, de apocalipse simbólico, desafiava a ficção. Que contraste com as chuvas de arco-iris no oceano verde da Amazônia íntegra!
Caiu a noite, e o voo continuava, agora sobre as extensões do Brasil de ontem, domado a ferro e a fogo nos séculos passados. Sob a luz fria de uma lua imensa descortinava-se um grande vazio no volume atmosférico. Apenas uma camada de nuvens secas e baixas, matizada como papel crepon, cobria a terra abusada abaixo. Partimos do reino das águas na Amazônia viva, passamos pelas infernais labaredas da destruição nos campos de violação e chegamos às planícies mortiças dos desertos de jusante, território tomado por arrogantes homens do agro negócio.

Quando a grande aeronave tocou o solo em São Paulo eu, absorto, mirava o infinito de modo reflexivo, ainda assombrado pela experiência acumuladas nas últimas 4 horas. Pensava sobre o que estamos fazendo com o mundo, quando despertou-me do torpor a visão de uma infinidade de micro arco-iris coloridos. Congelada a superfície externa da aeronave, cristais de gelo formaram-se em minha janela durante o taxiamento, e a luz dos potentes refletores do aeroporto produziram as refrações em miniatura. Conclui com eperança no coração: començando pelas pequenas coisas, precisamos reconstruir a Vida no mundo.

sábado, 6 de junho de 2009

Escaravelhos Humanos

Dezembro de 1998, cumpria um período científico na UnB em Brasília. Transicionava o governo FHC do primeiro para o segundo mandato. Eu me preocupava com as tentativas em curso para modificar o código florestal quando tive um sonho, daqueles que dá roteiro para filme de terror. No sonho vi-me no que parecia ser um centro cirúrgico de um hospital. A poucos metros encontrava-se um corpo deitado sobre uma mesa operatória, cercado por profissionais médicos, não conseguia reconhecer a sua identidade. Na verdade não conseguia nem bem ver os contornos do corpo, parecia coberto por um manto marrom escuro de algo que se mexia. Me aproximei, e que enorme susto, o substrato marrom era na realidade uma capa de milhares de escaravelhos grandes e feios movendo-se avidamente sobre o corpo, metendo suas trombas perfurando a pele, sugando o sangue. Me aproximei ainda mais, estranhando protuberâncias grandes nas cabeças dos insetos.... mas, o que era aquilo?...Incrível, ...não eram cabeças de escaravelho,...eram cabeças humanas... ou seriam apenas faces?... mais pareciam com máscaras em bailes de fantasia... Mas o quê? ...Eram faces conhecidas... sim, lembravam políticos no poder, fazendeiros da Amazônia, madeireiros, mineradores, empresários. Um dos médicos na sala se aproximou e me explicou que o corpo era o Brasil, e que os escaravelhos eram uma matilha pestilenta a refestelar-se sugando a vitalidade do corpo enfermo. Perguntei assombrado porque eles não removiam os escaravelhos, ao que eles responderam que não podiam, já que os seres disformes tinham o pulso vital do País em seu controle. Uma remoção radical resultaria na morte do corpo, assim que somente podiam tirar um a um. O sonho acabou e acordei aturdido. A imagem tétrica de escaravelhos humanos com caras amarronzadas de políticos e ruralistas me deixou consternado pelo azar do maravilhoso País Verde, em seu leito de morte. Desde este sonho já se vão mais de 10 anos, nos quais a realidade tenebrosa daquele sonho se mostra a cada dia com maior excrecência e vigor pestilento. Agora, a sociedade Brasileira, refém dos escaravelhos sugadores, se vê diante de um assalto de grandes proporções na própria legislação ambiental do País. Que será do corpo enfermo, quanto tempo ainda resistirá?