Vastas extensões de solos aráveis, naturalmente irrigadas por chuvas plenas em clima ameno fazem da América do Sul, e do Brasil em particular, um ambiente extremamente favorável para a agricultura e a criação de animais. A abundância de água nos rios favorece a produção de energia hidrelétrica. Some-se a essas benesses o mito do Eldorado de riquezas minerais nas rochas e sedimentos e o ouro negro do petróleo encontrado em cada vez maior fartura no subsolo, e teremos um quadro aproximado dos valores ufanistas reconhecidos pela sociedade brasileira contemporânea como qualificadores de um berço esplêndido. Já as magníficas florestas, ícones indissociáveis do Brasil consagrados no verde da bandeira, tendem a não ser reconhecidas como riquezas em si mesmas, capazes de motivar o orgulho nacional sem que se veja nelas alguma destinação utilitária. Se são os peixes dos rios e lagos apreciados, a madeira nas toras de árvores seculares, serrada, e um ou outro recurso adicional da flora e da fauna nativas, empregados, ainda assim o imaginário popular do “berço esplêndido” não reconhece a vida silvestre com valor comparável aos tesouros inanimados que constituem a base ideológica das riquezas da pátria.
As culturas que aqui se desenvolveram antes da invasão europeia tinham uma leitura diferente do significado de riqueza. Por milênios, o registro paleontológico sugere um continente pouco alterado na sua integridade ecológica. Seria esta uma indicação das florestas terem constituído um vasto jardim do Éden para aqueles habitantes ancestrais? A região continha extensivas paisagens antropizadas, principalmente pela domesticação da biodiversidade e manipulação da vegetação. Referindo-se a isso, o etnólogo Eduardo Viveiros de Castro afirma que “a relação dos povos indígenas com o ambiente americano era tecnológica, e não natural... tratava-se de uma relação plenamente antrópica, técnica, não uma relação "edênica”... de pura simbiose ecológica. Devemos falar então em coadaptação entre homem e ambiente neste caso, antes que de uma adaptação unilateral do ambiente aos desígnios do homem”. O modo de vida com baixo impacto ecológico dos habitantes ancestrais do continente sul-americano sugere que estes o viam como manancial de vida e o utilizavam de maneira respeitosa e tecnologicamente sustentável. A ciência atual tende cada vez mais, pelo viés objetivo, a corroborar esta visão. Michael Heckenberger e colaboradores, por exemplo, relatam em artigo na revista Science a descoberta de urbanismo pré-colombiano na Amazônia. Encontraram vestígios de complexas cidades distribuídas no alto rio Xingu, que sustentavam alta densidade populacional em paisagens com estradas, barragens e construções, mas onde a floresta era mantida em toda sua biodiversidade e função.
Por que os segredos nativos sobre a tecnologia da sustentabilidade foram perdidos ao longo da história? E por que a sociedade atual, amante da tecnologia, orienta-se por um sistema de valores cuja percepção antagônica e excludente do ambiente vivo justifica o desenvolvimento somente das riquezas materiais inanimadas? Uma das respostas pode encontrar-se no insuspeito desenvolvimento. Para os povos que aspiram por afluência, desenvolvimento tornou-se sinônimo quase obrigatório de geométrico progresso material. E, de fato, o progresso atingido por várias nações nos últimos dois séculos significou uma acumulação de opulência material jamais vista. A melhoria no conforto, a maior longevidade e o acesso aos novos símbolos de riqueza e da modernidade tornaram-se atraentes indicadores de desenvolvimento. Mas como a acumulação de riquezas e o progresso humano geraram uma ruptura com a Natureza?
O caso do Brasil ilustra um mecanismo padrão de desenvolvimento, no qual é possível encontrar elementos-chave para a compreensão de como as práticas correntes de desrespeito ao ambiente e à vida têm um encadeamento lógico na história. Ao longo dos últimos dois séculos, a antiga aspiração brasileira pelo desenvolvimento transformou-se num modus operandi que se cristalizou no desenvolvimentismo. O desenvolvimentismo como tal resultou da fusão de ideias do positivismo, dos nacionalistas, dos defensores da industrialização e dos intervencionistas pró-crescimento. A força propulsora para esta agregação surgiu da legitimada vontade de passar de vagão a locomotiva no avassalador trem do desenvolvimento lançado pela revolução industrial. Era a oportunidade de sair do primitivo domínio agrícola, com sua economia simples e localizada, e passar para a era industrial de sistemas complexos e economia expansiva. Nas palavras do economista político Pedro Fonseca, “o desenvolvimento já não seria apenas uma palavra de ordem a mais, mas o elo que unifica e dá sentido a toda a ação do governo, ao legitimar a ampliação de sua esfera nos mais diferentes campos.... Torna-se um fim em si mesmo, porquanto advoga para si a prerrogativa de ser condição para aspirações maiores, como bem-estar social, ou valores simbólicos de vulto, como soberania nacional”.
Assim, a decantada marcha para o desenvolvimento transmutou-se em um destino manifesto à brasileira, e na sua esteira surgiu uma grande e moderna nação, que caminha celeremente para o status de potência mundial. Nem por isso estabeleceu-se neste país verde um sistema justo de geração dessas riquezas materiais, já que os benefícios dos visíveis avanços econômicos ainda não percolam para uma maior parte dos brasileiros. Por conta da pressão política e econômica exercida pelas imposições do destino manifesto verde-amarelo, as estratégias de desenvolvimento que estruturam o caminho rumo ao progresso material foram e ainda são implementadas com vigor e sabedorias variáveis. Como a aceleração nas demandas dos mercados reflete-se linearmente na aceleração das estratégias de desenvolvimento, o cuidado com a conservação de ecossistemas, quando existiu, esteve subordinado às conveniências dos mercados. E, infelizmente, no sistema econômico atual, que ainda considera o capital natural como uma externalidade não precificável, quase nunca conservação do ambiente e da vida combina com ganhos econômicos. Isto resulta que para os não-humanos, os incontáveis trilhões de seres que compõem a mítica cornucópia de vida deste país megadiverso, vive-se a fase terminal de um extermínio ignorante, sistemático, insensível e, paradoxalmente, destrutivo das bases do sistema de suporte de vida, portanto comprometedor do próprio desenvolvimento.
A construção dos valores pátrios, a consolidação da economia para o desenvolvimento e o jogar fora a Natureza com a água do banho são todos fenômenos cujo enfrentamento requer compreensão de estruturas culturais complexas e sua evolução no tempo. Se o que se quer é um ajuste construtivo no processo social ou a criação de um pacto mais iluminado para um desenvolvimento sustentável que não fique somente na retórica, enxergar adiante requer um olhar franco para trás. E uma radiografia das raízes culturais recônditas que explicam atitudes e valores atuais precisa começar pelo componente mais sofrido no triângulo do desenvolvimento sustentável, o pouco caso brasileiro com o meio ambiente e a vida. Roberto Gambini propõe que denominemos a chegada no século XVI dos europeus ao novo mundo como o que realmente foi, uma invasão, a que Viveiros de Castro chama de enorme catástrofe, e não um róseo descobrimento. A sistemática subtração na nação brasileira da espiritualizada herança nativa foi a segunda invasão, feita por emissários da igreja na alma dos povos. Com a pulverização da cultura nativa, perderam-se também os conhecimentos tecnológicos evoluídos sobre sustentabilidade em ambiente tropical complexo, principiando assim a destruição do paraíso. A partir da brutal invasão colonial europeia, portanto, os ricos biomas brasileiros passaram por sucessivas ondas de exploração destrutiva. Além de dizimarem os povos nativos com doenças terríveis e tentativas de escravização, os europeus inauguraram uma antiecologia truculenta, que se tornou modelo para o que viria a seguir, com a exploração voraz do primeiro recurso natural
brasileiro levado à extinção, o pau-brasil. O modelo colonial europeu de exploração continuada de qualquer recurso que tivesse valor até seu esgotamento total, sem qualquer preocupação com a sustentabilidade, explica-se superficialmente pela própria natureza da distante colônia de além-mar. O Brasil era uma não-pátria, terra de ninguém, sem lei nem rei, habitada por humanos primitivos que, segundo a igreja da época, nem alma possuíam, repleta de tesouros irresistíveis, obscenamente disponíveis para a pilhagem. Passaram-se os séculos, foram-se os conquistadores mercenários, surgiu um povo miscigenado da terra, tornou-se independente a nação e com ela formou-se também uma pátria. Mas a herança maldita do saque à Natureza transferiu-se dos europeus por hereditariedade cultural, quedou-se alojada no inconsciente coletivo, incrustou-se em memes culturais10 autoreprodutivos, hoje plenamente dissimulados em nossa identidade brasileira. O saque, feito agora sem muitos pudores na própria mãe-pátria, embutiu-se sub-repticiamente como mentalidade de desenvolvimento, vestiu-se de direito e assegurou-se de imunidade nas instituições, associando-se como um carrapato ao mantra do destino manifesto verdeamarelo. O desrespeito cultural ao esplêndido lar pátrio provido pela Natureza é continuamente re-introjetado, tornou-se inato em mentalidades de segmentos chave da sociedade.
A consciência sobre todo o negativo associado à história da invasão europeia pode levar ao despertar de uma crítica libertadora, mas nem por isso seria sábio perder-se em lamentações sobre um passado revoltante pelo qual não podemos responder. Se, por um lado, o reconhecimento dos valores distorcidos é condição necessária para avançar para um futuro sustentável, permitindo reversão de curso através do diagnóstico correto e remoção do carrapato cultural herdado do invasor; por outro lado, para não cair no vazio, é importante recuperar os referenciais saudáveis e verdadeiros de respeito à vida. É possível que as culturas pré-colombianas que aqui habitavam ofereçam em sua memória um rico portfólio de soluções tecnológicas para a sustentabilidade, que, se empregadas, viabilizariam a recuperação de uma coexistência respeitosa do homem com a Natureza. Entretanto, para a civilização atual vir a fazer qualquer aproveitamento eficaz das tecnologias nativas em sua transformação na direção da sustentabilidade, seria necessário enfrentar grandes desafios nas adaptações extensivas e criativas requeridas. Ademais, sem poder contar com a receptividade do sistema cultural prevalente, urge encontrar rotas alternativas de diagnóstico e terapia. Impermeável à crítica externa, resta dissecar o âmago da própria mentalidade invasora, encontrar nela sua lógica e contradições, e trabalhar a partir daí. Quando numa floresta fechada se toma uma trilha errada que leva a um brejo intransponível, a impossibilidade de desvios ou corta-caminhos a partir daquele ponto deixa somente uma saída: retornar pela mesma trilha até a bifurcação do equívoco. Analogamente, é preciso dar marcha a ré nas caravelas, retroceder no tempo e no espaço para contemplar criticamente o pequeno continente Europeu, donde séculos atrás explodiram ondas de barbarismo colonial. Quando a Europa e sua história cultural são colocadas em foco, torna-se evidente que não somente os obscuros valores feudais nos atingiram na invasão, desaguando na interrupção do desenvolvimento cultural autóctone por chumbo, aço, germes e crucifixos. Com a subordinação forçada das colônias ao processo cultural europeu, a interferência foi muito maior e duradoura. Almas, corações e mentes nativas, antes livres, passam a carregar o peso do império nas costas. Assim, o miscigenado povo brasileiro surgiu e cresceu fundamentalmente colonizado, quase sem memória própria, atrelado ao hegemônico continente distante. Para compreender os pontos críticos na evolução do pensamento europeu e suas amplas implicações, podemos adotar a mesma metodologia dos naturalistas europeus do século 19 que chegavam para estudar e descrever o jardim do Éden no novo mundo. Paralelo curioso no plano simbólico, Humboldt às avessas, o nativo americano precisa investigar os valores e estruturas daquele pensamento e cultura que lhe subjugou, o colonizado escarafunchando a mente de seu colonizador.
Com uma história humana intrincada e fascinante, o continente europeu foi o caldeirão multicultural onde se deu o drama central na maturação da ciência e da tecnologia modernas. Como estas estruturas culturais e seus métodos de pensamento que definem percepções correntes da Natureza e de si próprias tornaram-se trilhos condutores na gestação e agregação da civilização global, pode-se dizer que saltaram da Europa para o mundo e tornaram-se temas universais da humanidade. Um bom local, portanto, para buscar raízes e revelar encadeamentos com consequência para a sustentabilidade.
© Copyright Antonio Donato Nobre, 2009, informações com o autor, antonio.nobre@inpe.br
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