quarta-feira, 10 de junho de 2009

Chuvas de Arco Iris

Fui a Manaus a convite do meu diretor, Adalberto Val, para contribuir com um esforço de renovação feito pelo INPA na definição de novos focos institucionais, discutir os grandes objetivos da pesquisa Amazônica. Apresentei uma rápida analise sobre serviços ambientais, mas me encantei mesmo foi com o que se apresentou lá sobre nuvens, chuvas, aerossóis e a floresta, oriundo das pesquisas lideradas pelo Instituto Max Planck. Ao embarcar no Airbus A330 de volta a São Paulo, estava feliz de haver escutado sobre as novidades que aumentavam cada vez mais a conciência da importância da floresta para o clima. Enquanto rolava o grande avião pela pista pensava sobre a maquina fantástica e sofisticada, dezenas de toneladas, capaz de erguer-se na direção do azul numa velocidade impressionante. Apenas poucos minutos após a decolagem, deixando a urbe da selva para trás, já podia divisar a sudeste o campo de nuvens para além da margem direita do grande Amazonas. Chegamos rápido a altitude de 12 mil metros (62 graus negativos de temperatura externa), passava das 16:30 h. Com o sol baixo no horizonte atrás, eu sentava na janela ao lado esquerdo, quase na cauda da aeronave, com o panorama se desenrolando como uma pintura em movimento abaixo da enorme asa. Tapete de brócolis verde escuro, via-se a floresta por debaixo de nuvens baixas individualizadas, chamadas de maritime pelos meteorologistas, que chegavam a 4 km de altura. Com o formato de algodão doce, resplandeciam estas nuvens de um branco puro, todo o quadro emoldurado por uma variedade de outras nebulosidades de água em suspensão, cujas matizes variavam do branco ao cinza chumbo. Acima deste grande teatro tridimensional, disputando espaço na abóbada celeste onde deslizava sereno nosso avião, delgadas formações translúcidas flutuavam no invertido oceano azul-oxigênio do infinito. Como se toda esta visão de beleza não fosse suficiente, as variadas nuvens de baixa altitude estavam quase todas descarregando seu precioso líquido sobre a floresta, como regadores no jardim do Éden. Neste momento veio o golpe de misericórdia, que fez imaginar-me transitando num outro mundo etéreo: a iluminação solar razante a projetar-se sobre estas nuvens, meu ângulo privilegiado de visão e os cristais no líquido em precipitação entraram em sinergia num efeito extraordinario de refração da luz branca, produzindo milhares de micro arco-iris, creio um para cada gota, colorindo a chuva em toda sua altura, da fonte na nuvem, cujo branco não se contaminava com as cores, até o sombreado tapete verde na floresta. Como o avião no seu curso deslocava lentamente meu ângulo de visão, as cores na chuva de arco-iris passeavam por toda a extensão lateral da precipitação, fazendo com que a nuvem branca extendesse um iridiscente e multicolorido vestido longo até a floresta, vestido que também parecia escoar pelo efeito das gotas em movimento gravitacional. A surreal beleza daquela realidade inundava meus olhos e se multiplicava às dezenas, pois outras nuvens próximas e distantes produziam o mesmo efeito de luz e cores, um espetáculo de 20 minutos que pareceu desenrolar-se noutra dimensão de tempo. Ainda agora, dias depois, deleito-me na observação da cena projetada pela memória vívida na tela virtual da mente. Quando passamos pelo que parecia ser uma fronteira do campo das chuvas de arco-iris, o airbus inclinou-se para a direita, desviando-se de algo à frente, mostrando-me pela janela empinada o azul escuro profundo do céu onde agora não haviam nuvens. Quando a aeronave completou o desvio de trajetória à direita, voltou a girar em torno do eixo longitudinal, agora para a esquerda, descrevendo um grande arco em torno do motivo do desvio, uma estrutura gigantesca que agora preenchia quase todo o campo de visão na minha janela pendente. Era uma nuvem cilíndrica vertical branco-fosforecente com textura flocos-de-lã, cujo topo estava acima donde voávamos e a base surgia das profundidades, quase tocando a superfície. Iluminada potentemente pelo sol inclinado, esta nuvem era um gigante branco isolado no espaço, com o azul profundo e limpo no segundo plano acima, o verde escuro intenso da floresta em baixo e o campo de belas nebulosidades esparsas à distância, uma pintura impressionista de Monet. Normalmente as nuvens fisicamente próximas do avião passam muito rapido, mas esta não. Contemplava-nos pacientemente, parecia como se a viagem houvesse apeado num mirante aéreo imaginário para render homenagem àquela apoteose branca da Natureza. Devia estar bem distante, talvez uns 10 km, mas sua circunferência e estatura eram tamanhas que geravam a ilusão de estar logo ali, como se a asa inclinada, na sua trajetória em câmera lenta próxima do perímetro, fosse tocá-la. O arranjo arquitetônico majestoso das gotas de água lá fora foi demais para minha alma, rolaram as gotas da emoção.
Como pode ser que nunca houvera visto tal espetáculo tendo vivido mais de 20 anos em Manaus e tendo voado este mesmo trajeto incontáveis vezes? Nestas imagens pude ver em ação todos os principios descobertos pela ciência atmosférica do projeto LBA; pensei na cornucópia de biodiversidade ativa no oceano verde da floresta, controlando a evaporação e a condensação da água no ar, a formação de nuvens, a dinâmica dos ventos. Mas acima de tudo, pude testemunhar com emoção como a Natureza viva consegue ser prática sem perder a elegância, enfeitando cada processo fundamental com uma arte incomparável de extravagante beleza.
E a viagem no airbus continuou. Estavamos possivelmente nos aproximando da região do rio Teles Pires, não sei. Vi no horizonte à frente um brilho alaranjado, como um reflexo numa superficie espelhada. Quanto mais nos aproximávamos, mais intenso o laranja até que finalmente pude divisar a superficie plana de um grande rio que serpenteava na floresta. Donde vinha a cor forte que se refletia ali? O sol estava a oeste, a reflexão era promovida por luz de leste. Pouco depois começaram a aparecer áreas imensas de desmatamento recente, estávamos chegando ao arco do fogo. Mas se estávamos na estação das chuvas, donde viria o alaranjado que parecia o reflexo de chamas? Respondendo a esta pergunta surge no campo de visão de meu privilegiado assento no anfiteatro aéreo uma cena chocante de simbolismo assustador. Nuvens grandes, muito maiores do que aquelas sobre o oceano verde, subiam da floresta em ruínas. Eram nuvens esgarçadas, confusas, não tinham uma geometria definida. Não haviam chamas nem labaredas reais de queimadas, não poderia haver com tanta umidade. Aquele laranja, que já se tingia de tons vermelhos fortes, era a mesma luz do poente, agora com o sol afundando no horizonte e separando os componentes primários da luz branca. A porção quente do espectro pintava de fogo as nuvens bagunçadas, de tal forma que estas pareciam com enormes labaredas de 7 km de altura. Fechando a visão do céu azul profundo de até há pouco, e completando o cenario sinistro, um outro tipo de formação nebulosa, cor de chumbo lembrando fumaça e fuligem, constituia um teto denso e compacto acima destas nuvens-chama. Aquele cenario real, de apocalipse simbólico, desafiava a ficção. Que contraste com as chuvas de arco-iris no oceano verde da Amazônia íntegra!
Caiu a noite, e o voo continuava, agora sobre as extensões do Brasil de ontem, domado a ferro e a fogo nos séculos passados. Sob a luz fria de uma lua imensa descortinava-se um grande vazio no volume atmosférico. Apenas uma camada de nuvens secas e baixas, matizada como papel crepon, cobria a terra abusada abaixo. Partimos do reino das águas na Amazônia viva, passamos pelas infernais labaredas da destruição nos campos de violação e chegamos às planícies mortiças dos desertos de jusante, território tomado por arrogantes homens do agro negócio.

Quando a grande aeronave tocou o solo em São Paulo eu, absorto, mirava o infinito de modo reflexivo, ainda assombrado pela experiência acumuladas nas últimas 4 horas. Pensava sobre o que estamos fazendo com o mundo, quando despertou-me do torpor a visão de uma infinidade de micro arco-iris coloridos. Congelada a superfície externa da aeronave, cristais de gelo formaram-se em minha janela durante o taxiamento, e a luz dos potentes refletores do aeroporto produziram as refrações em miniatura. Conclui com eperança no coração: començando pelas pequenas coisas, precisamos reconstruir a Vida no mundo.

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